O dia 9 de novembro é lembrado por alemães, fascistas e judeus, pelo que representou em décadas cuja leitura oferta lições.
1918
O Império Alemão, o “2° Reich” que se reivindicava herdeiro do Sacro-Império Romano-Germânico, foi fundado no palácio de Versalhes em 1° de janeiro 1871, no contexto da vitória militar sobre o 2° Império francês de Napoleão III. E sucumbiu do mesmo modo, na derrota alemã na 1ª Grande Guerra, 47 anos depois.
Em 9 de novembro de 1918, o povo alemão faminto e desesperançado, tomou as ruas, derrubou o Império e proclamou a república que meses depois viria a ser conhecida como “de Weimar”, por conta da assembleia que nessa cidade se reuniu para redigir a nova constituição.
Cedo, no entanto, a República de Weimar teve que enfrentar uma terrível “fake news” militarista, criada pela dupla de generais que dirigira as forças alemãs nos dois anos finais da 1ª Guerra. Destituídos da grandeza e dignidade necessárias para admitir os próprios erros e insucessos, Hindenburg e Ludendorff construíram a pós-verdade da “punhalada nas costas”.
A mentira foi sistematizada em 1920 por Hindenburg em sua autobiografia “Fora da minha vida”, na qual o general usou da lenda do guerreiro Siegfried (inexpugnável a não ser em um ponto nas costas, onde à traição recebeu a punhalada fatal) para dizer que a guerra estava indo muito bem, não fosse a derrubada do regime por comunistas e financistas judeus, algo no nível de o “PT quebrou o Brasil e a Petrobrás”. A verdade era bem outra!
Em 29 de setembro de 1918, mais de um mês antes da proclamação da república em 9 de novembro, o próprio Hindenburg e seu parceiro Ludendorf se reuniram com o Kaiser Guilherme II e comunicam que a guerra estava perdida e que a Alemanha deveria buscar os termos de rendição.
Mas o mito da “punhalada nas costas” vicejou na sociedade alemã, que não habituada aos contratempos do debate democrático atribuía a culpa de todos os males à república. O terreno político se tornou fértil para o fascismo.
1923
No 9 de novembro de 1923, como que para ressignificar a derrubada da monarquia em 1918, um bando de arruaceiros e brigões – do tipo que ocupou rodovias no Brasil depois de 30 de outubro de 2022 – tentou um golpe de estado a partir de uma cervejaria em Munique. A “figura de proa” do movimento era o mesmo general Ludendorff, co-inventor do mito da punhalada nas costas. Contudo, o verdadeiro líder da intentona foi um ex-cabo, mentalmente doentio, artista frustrado e aluno medíocre que sequer completara o ensino médio, chamado Hitler.
Hitler foi preso, julgado e condenado. Porém, alinhado à direita, o leniente judiciário o soltou sob a promessa de não empreender atividades políticas, e mais tarde o liberou até dessa restrição. Também aqui se viu a postura pusilânime dos que deveriam defender a democracia, a cada vez que o deputado Bolsonaro fez a apologia a golpes, ditaduras, torturas, pena de morte e massacres. Provavelmente veremos a mesma omissão e tolerância criminosa quanto aos golpistas de 2022.
Na Alemanha, o resultado do desleixo institucional na defesa da democracia se viu em 1932, ano em que os fascistas se tornaram a força mais influente no parlamento, finalmente chegando ao governo em janeiro de 1933. As perseguições aos “culpados” pela mítica facada nas costas, os judeus e os comunistas, começaram quase imediatamente.
1938
Chaplin satirizou no antológico “O Grande Ditador” a tentativa real de amenização da perseguição aos judeus por parte dos fascistas alemães, que buscavam empréstimos internacionais e uma boa imagem durante as olimpíadas de Berlim, em 1936. Durou pouco.
Hitler e sua entourage de deformados resolveu comemorar o 20° aniversário da República de Weimar com a até então maior de todas as barbáries antissemitas, a “Noite dos Cristais”, em 9 de novembro de 1938. Nunca um país inteiro se entregara a uma onda de violência sistemática e concentrada contra os judeus, uma orgia animalesca que deixou centenas de mortos, mais de 30 mil judeus enviados para campos de concentração, e a destruição de mais de 7 mil empresas e de mil sinagogas.
A “Noite dos Cristais” foi o clímax da reação à fantasiosa “conspiração judaico-comunista” internacional, e que deixou marcas tão profundas que qualquer alemão mediano, quando perguntado “contra quem é a guerra”, responderia mesmo em 1945 que era “contra os judeus”.
1989-2022
Em 9 de novembro de 1989 caiu o muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria. Desde então o fantasma do comunismo só aparece como espantalho convenientemente justificador de violações aos direitos humanos. É o caso dos generais brasileiros.
Afeitos à história e senhores da guerra híbrida, os milicos escolheram o simbólico 9 de novembro para tornar pública sua própria “punhalada nas costas”, ou uma outra versão da uma “facada de Juiz de Fora”, agora sob a forma de questionamento ilegítimo das urnas.
O fato é que nossos generais são avessos à democracia, forma de organização política que lhes causa desde mero desconforto cutâneo, até impotência sexual. Até o ex-indígena senador Mourão confessou que só não dão um golpe de estado agora porque não teriam apoio dos EUA. Fosse Trump o presidente em Washington, os fardados daqui se atirariam à perpetuação do clã Bolsonaro no poder, comoantes militares italianos e alemães viabilizaram as ditaduras dos cabos Mussolini e Hitler.
Semear fogo
O mesmo Exército Brasileiro que por décadas pregava o lema positivista da “Ordem e Progresso” agora busca despudoradamente o caos e o retrocesso.
Escapa à visão dos generais que as consequências da desordem vão muito além do que preveem seus manuais de “combate ao comunismo”. Para os advertir, há uma outra lenda que não a de Siegfried e suaa “punhalada nas costas”, ou a de que “o PT quebrou o Brasil”. Trata-se do “vagabundo de Dresden”.
Antes de Hitler a iluminada cidade de Dresden, a “Florença do Elba”, tinha a maior sinagoga da Alemanha. Diz-se que, enquanto ardia o grande templo, incendiado pelas milícias fascistas no 9 de novembro de 1938, um conhecido vagabundo da cidade vaticinou em meio à multidão que assistia impassivelmente à tragédia, que aquele fogo iria “fazer uma longa curva e voltar até nós”, e que por isso ele iria embora.
Reza a lenda que o vagabundo nunca mais foi visto. Já o fogo…
Levou mais de 6 anos até que Dresden fosse arrasada por bombas incendiárias em fevereiro de 1945, com a morte de 25 mil habitantes. E, assim como o fogo ateado pelos fascistas na Noite dos Cristais consumiu outras sinagogas por toda a Alemanha, o fogo que retornou “depois da longa curva” queimou Aachen, Berlim, Bonn, Bremen, Colônia, Dortmund, Düsseldorf, Essen, Frankfurt, Hamburgo, Hannover, Kassel, Leipzig, Mainz, Munique, Münster, Nurembergue, Osnabruque, Stuttgart e Trier, dentre outras cidades alemãs.
Nessa perspectiva, o Exército será incendiário ou bombeiro?