23 de February de 2024
Por Normando Rodrigues
O incômodo ante a altivez da diplomacia brasileira, quanto ao holocausto palestino, começou em meados de janeiro, no momento do nosso endosso à denúncia da África do Sul contra Israel na corte de Haia.
Na sequência veio a declaração de Lula na cúpula da União Africana, em Adis Abeba, no domingo, 18 de fevereiro. E Lula foi preciso, oportuno e genial.
Preciso porque manejou corretamente a definição jurídica do crime de genocídio. Oportuno, porque sabia que na segunda, 19 de fevereiro, começariam as audiências do processo contra Israel na Corte Internacional de Justiça. E genial por ter seguido os passos de um gênio, na acepção da palavra.
Como nada disso é admissível a um chefe de estado periférico, apressaram-se os arautos do Grande Ocidente a espancar o Itamaraty, PT e Lula. Alguns até pretenderam dar revestimento “técnico” aos queixumes, com uma leitura tendenciosa da legislação.
Sim, há uma legislação para genocídio. O crime foi tipificado internacionalmente pela Convenção de Londres de 1948, ratificada pelo Brasil em 1952 e pouco depois reproduzida em nossa lei penal.
A Convenção de Londres foi lembrada contra Lula. No entanto, por algum conveniente motivo (a permanente instigação do ódio a Lula e ao PT não pode ser descartada), a peça foi invocada apenas em parte, para argumentarem que a inexistência de intenção assassina (dolo) por parte de Israel, na “negação do direito à vida” do grupo-vítima palestino, descaracterizaria o crime.
Segundo tal tacanha leitura, Israel estaria apenas a cometer “crimes de guerra” por descuidar dos “danos colaterais” à população civil em seu “exagerado” uso da legítima defesa. Na verdade, “crimes de guerra”, “danos colaterais” e “exagero” são expressões que banalizam a barbárie israelense e ofendem a memória de mais de 30 mil palestinos assassinados em 5 meses, dos quais 12 mil crianças.
Apenas aí já estaria grosseiramente equivocada a grande mídia. Há evidente intenção. O extermínio é sistemático, metódico. O assassinato intencional de palestinos na Faixa de Gaza, promovido pelo estado de Israel desde outubro de 23, se deve ao simples fato de serem palestinos e estarem ali, e isso está tão documentado quanto o fato de o assassinato de judeus pelo estado alemão entre 1938-45 se dever ao simples fato de serem judeus e estarem ali. Mas há muito mais.
Duas outras definições jurídicas do crime de genocídio foram omitidas pelos críticos de Lula, talvez porque tipifiquem ainda mais precisamente a conduta de Israel, pois é também genocídio: causar danos à integridade física ou mental de membros do grupo-vítima; e impor deliberadamente ao grupo-vítima condições de vida que possam causar sua destruição física, total ou parcial.
Israel comete genocídio na Faixa de Gaza há décadas. Concretar nascentes de água palestinas, demolir casas de parentes e vizinhos de terroristas palestinos e roubar terras palestinas para assentar colonos judeus são típicas condutas genocidas, à luz das duas definições omitidas. No entanto, todas se apequenam ante as ciclópicas atrocidades da Haganá, na invasão militar à região.
85% da população palestina na Faixa de Gaza perdeu suas casas desde outubro, fenômeno que serviu de pano de fundo para a seção de gastronomia do jornal Haaretz (diário “progressista” de Tel-Aviv, que faz oposição ao genocida Netanyahu) publicar tutoriais orientando os soldados israelenses sobre “como cozinhar numa casa palestina abandonada?”. Algo do tipo “geralmente eles guardam tais e tais ingredientes em tais locais e os achando você pode preparar um delicioso…”.
Toda a infraestrutura da região foi reduzida a escombros, incluídas redes de água e esgoto, hospitais, escolas, universidades, rodovias e cerca de 360 mil residências. Claro, já existem lucrativos planos de reconstrução pelas empreiteiras israelenses, compreendendo luxuosos resorts à beira mar.
Sobre tudo isso os comentaristas globais calam. Dentre os mais toscos, Boçal, o Imortal, disse faltar conhecimento histórico a Lula, na comparação Holocausto-Gaza, o que fundamentou em lógica unicamente numérica: milhões de vitimas em um e poucas dezenas de milhares em outro.
Trata-se, portanto, de uma indignação selecionada em escala e proporção. Milhões precisam morrer para que a vida de uma criança palestina seja considerada tão valiosa quanto a vida de uma criança judia europeia. São “somente” dezenas de milhares de mortos e nem de longe a vida de uma criança palestina pode ser comparada à vida de uma criança ucraniana.
Não é preciso ser um Einstein para saber que Lula está certíssimo. Basta ter dignidade. No entanto, o primeiro a colocar o dedo na ferida e dizer o que agora disse Lula, foi um judeu alemão refugiado do fascismo, chamado Albert Einstein.
Corria o ano de 1948, ano da criação do estado de Israel, da proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem e a da Convenção de Londres aqui já referida, e Einstein então afirmou por escrito que as práticas da direita israelense com relação aos palestinos eram em tudo iguais às do partido nazista, com relação aos judeus.
Após a decretação do status de persona non grata a Lula, pelo governo do corrupto (assim o declarou a mais alta corte de Israel) Netanyahu, a “Articulação Judaica de Esquerda” robusteceu a mesma comparação, em apoio ao presidente brasileiro: “As semelhanças são insuportáveis. São dolorosas e desconfortáveis (…) Quando se menciona isso não se banaliza o Holocausto, como afirmou o criminoso de guerra que chefia o Estado de Israel agora. Faz-se memória e justiça, restabelece-se a verdade e honram-se aqueles que lutaram e sobreviveram.”
Em seguida, o grupo de rabinos ortodoxos Torah Judaism também defendeu Lula e afirmou: “o governo de Israel, sob o comando de Netanyahu, é ainda pior do que o dos nazistas.”
A imprensa que malha Lula é a mesma que até hoje oculta a destruição do gasoduto russo-germânico “Nordstream 2” pelos americanos, a qual é, por sua vez, um dos tributários da investida israelense em Gaza.
Num momento em que a Europa está carente de gás, Netanyahu conecta o extermínio e expulsão do povo palestino à apropriação de gigantescos reservatórios de gás natural no subsolo das águas territoriais de Gaza. Assim como Hitler se apropriava até do ouro dos dentes das vítimas das câmaras de gás.