30 de January de 2024
Nossa conversa é áspera pelo uso de “gentalha”, à qual poderíamos juntar “escória”, “ralé”, “essa gente”, “escumalha”, designações arrogantes que decoram o ideário fascista e se opõem diretamente a “elite”, “nata”, “escol”, “povo escolhido”, “destino manifesto”, “raça superior” ou “classe dominante”.
Quando nos permitimos usar “gentalha”, “escória”, “ralé”, “essa gente”, “escumalha”, fala o fascista que em todos nós habita, a besta incivilizada que devemos reprimir todo dia ao acordar e nos ver no espelho, com o mantra “hoje não vou matar ninguém!”. Apesar disso, usemos a ferramenta “gentalha” para designar o verdadeiro estorvo da sociedade.
O relatório mundial divulgado pela Oxfam, rede global empenhada no combate à desigualdade, registra a aceleração da concentração de renda em todo o aquecido planeta. Os 5 (olhe os dedos de sua mão) indivíduos mais ricos têm renda equivalente a 2,72 bilhões de pessoas, 34% da humanidade.
Na nossa Pindorama, em particular, perto de 20 mil pessoas têm voz ativa no mercado de ações e detêm 27% da renda nacional, sem 1 dia sequer de trabalho.
Nos cinco primeiros anos após o golpe contra Dilma e graças aos governos do usurpador Temer e do monstro fascista que o sucedeu, aqueles 20 mil rentistas brasileiros DOBRARAM seus lucros com a redução de direitos trabalhistas. Uma neo-escravização rotulada de “dinamização da economia” nas decisões dos mesmos juízes do STF que logo em seguida, em eventos públicos, lamentam com cara de contrição dominical a obscena desigualdade social.
Mas afinal, o que produzem os 102 milhões de brasileiros que compõem a metade mais explorada da nação, e em especial os mais de 67 milhões abaixo da linha de pobreza?
Produzem 20 mil milionários, dos quais 51 bilionários, alguns desses legítimos mercadores da morte elevados a “bi” pelos lucros farmacêuticos e da medicina mercantilizada durante a pandemia.
Essa gentalha de 20 mil supostas almas é aproximadamente 1/41 (um quarenta e um avos) da população carcerária do Brasil. Não vai aqui uma sugestão do trato de que são merecedores os verdadeiros parasitas da sociedade. É só uma lembrança.
A mazela do desequilíbrio entre uns poucos vermes de um lado e uma enormidade de necessitados de outro não tem nada de acidental. É um projeto político, econômico e social, construído há séculos. A “evolução” dessa dominação, contudo, requer atenção a certas complexidades e sutilezas.
Se no século XIX o projeto contava com o judiciário e grilhões para submeter os escravizados, hoje o plano deve ao mesmo judiciário e à mídia hegemônica a construção do grande consenso segundo o qual os netos daqueles escravizados precisam pedalar 12h por dia na entrega de lanches, mentalmente metamorfoseados em “empreendedores”, ou em “colaboradores” se um pouco mais qualificados.
E a metamorfose, assim como a injustiça, não é para todos. A gentalha é, ela própria, imune à contaminação ideológica da crença no “livre mercado”, pois vivem muito bem de muito dinheiro público. Tipo Elon Musk pedindo protecionismo e contratos estatais ou, exemplo brazuca, o “Ogronegócio” triplicando os recursos da União que captura desde o golpe de 2016. Recursos, aliás, que são em mais de 70% originários da tributação de quem está embaixo.
Como se vê, os 20 mil brasileiros milionários são bons fariseus, dedicados a pregar que os hospedeiros de cujo sangue vivem não tenham auxílio algum do estado. Afinal, somente a “nata” da sociedade é merecedora.
Os “sem auxílio” podem se rebelar? Claro! Mas, via de regra, quando a massa escravizada faz escolhas políticas em defesa de seus próprios interesses, e não mais em favor do lucro dos ricos, a verdadeira gentalha parasitária convoca seus cães fascistas. Em raros episódios, a gentalha até suja as mãos, como fez ao menos um dos 51 bilionários, Mario Luft, patrocinador da brancaleônica tentativa bolsonarista de 8 de janeiro de 23.
Direta ou indiretamente, o fato é que a gentalha reage desproporcionalmente ao ser desafiada na manutenção da fome, miséria e escravidão de milhões de seres humanos, das quais depende. Sem hesitar, recorre ao golpe de estado, possibilidade evidenciada em 1964, em 2016 e sempre que os ricos forem derrotados nas urnas. Contudo, algo piorou bastante nos últimos oito anos.
Em rápida rememoração, a torpe Ditadura Militar de 1964-1985 nasceu da cumplicidade dos três principais governadores do país: Adhemar rouba-mas-faz de Barros em São Paulo; Carlos Lacerda, o Corvo, na Guanabara; Magalhães Banco-Nacional Pinto, em MG. Três políticos antidemocráticos, fiéis servidores dos investidores internacionais. Agora, comparemos.
Hoje, respectivamente, temos à frente de SP o bolsonarista pró-matança Tarcísio de Freitas; no RJ, o mochileiro-de-grana-provisoriamente-solto Cláudio Castro; e em MG o atentado ambulante à sociedade chamado Romeu Zema.
Ao contrário da trinca de 64, a atual não tem nada a oferecer à gentalha dos 20 mil ricos, senão o próprio modo autoritário, desumano e violento de ver o mundo. E o fazem com a soberba típica dos incultos.
No último 8 de janeiro, os três governadores marcaram posição contra a democracia. Não se tratava de tomar o partido da corrente “A” ou “B” e sim de afirmar um rasteiro acordo civilizatório: devem haver eleições, o mais limpas e justas o possível, e quem ganhar, leva!
Incapazes de comungar desse mínimo denominador democrático, Tarcísio, Castro e Zema, junto a outros 11 governadores e mais 30 senadores, deixaram claro que esperam, torcem e trabalham por um novo golpe de estado.
E boa parte da esperança dessa gentalha está depositada na possível eleição de Trump, em novembro.