24 de February de 2024
O Brasil, mais uma vez, está atolado na discussão interminável sobre déficit versus superávit fiscal. Um país gigante, com riquezas enormes e problemas idem, discute muito pouco como irá deixar de ser o 7º mais desigual do planeta, no qual os 10% mais ricos ganham quase 59% da renda nacional e a metade mais pobre fica com menos de 1% da riqueza do país. Ademais, o 1% mais rico possui quase a metade da fortuna patrimonial brasileira.
Além disso, 11 milhões de nossos jovens são chamados “nem-nem”, pois não estudam nem trabalham, mais de 21 milhões de pessoas não têm o que comer todos os dias e 70,3 milhões estão em insegurança alimentar, segundo a ONU. Nossa infraestrutura é precária e os gastos com ciência e tecnologia são módicos: cerca de 1,2% do PIB, enquanto passa de 4% em Israel e Coreia do Sul e mais de 2% na China, Alemanha e Austrália.
O SUS é subfinanciado, como atestam as filas para exames para diagnósticos, inclusive de câncer, e de cirurgias, em todo o país. As deficiências de políticas públicas para as áreas de segurança pública, educação, saúde e assistência social saltam aos olhos. Há compromissos políticos para serem cumpridos e o orçamento público restringe objetivamente os limites do possível.
Obviamente, não se desconsidera uma gestão fiscal responsável como parte da política econômica, mas ser responsável é agir de acordo com a realidade, não se submetendo aos desejos inconfessáveis dos rentistas e levando em conta as necessidades objetivas da maioria da população e de um projeto nacional de desenvolvimento. Por isso, entre as Anas supracitadas, fico com a Botín, que é chefe da Vescovi. A manifestação de sua subordinada da Faria Lima é primária e não se sustenta nos fatos históricos e em elementos teóricos críveis. Já a manifestação contrária, da líder maior revela uma maturidade conceitual porquanto afinada com a dinâmica macroeconômica da formação de renda das economias capitalistas. Sua concepção da realidade fiscal de um país e dos instrumentos necessários para o crescimento econômico têm identidade histórica e aderência com a realidade contemporânea das economias de mercado. A visão estreita da economista daqui é apenas a reprodução do “samba de uma nota só” do mito do orçamento equilibrado, que não dialoga com os fundamentos teóricos formados a partir de debates recentes em vários centros de excelência acadêmica.
O Brasil não precisa de fazer superávit todos os anos, especialmente quando o governo que se inicia tem a missão de reconstruir políticas públicas devastadas por um tsunami que se vangloriou de liquidar o próprio Estado. Além disso, o passado dos governos do Presidente Lula e Dilma credencia a gestão orçamentária iniciada no corrente ano. O líder eleito e o seu time sabem muito bem a importância da responsabilidade fiscal. Mas isso é muito diferente de enquadrar o executivo no cercadinho do déficit zero. Tal referência foi inserida na proposta do arcabouço fiscal como uma meta a ser perseguida, mas com flexibilidades e conjugada com um esforço de ampliação da arrecadação fiscal, sem ampliar a já regressiva base tributária existente.
E, vejamos, a situação do Brasil é muito melhor do que quando Lula assumiu pela primeira vez, em 2003.
Nossa dívida interna é em Reais depois de uma perigosa dolarização parcial em 2001 e 2002, temos um colchão de liquidez do Tesouro Nacional de mais de R$ 1 trilhão e nossas reservas cambiais superam 340 bilhões de dólares, sendo a sexta maior do mundo. É bom lembrar que em 2002, tais reservas eram minúsculas, de apenas R$ 40 bilhões e US$ 37 bilhões, respectivamente.
Mas, imaginemos que ainda assim, o rigor fiscal paire sobre nossos pescoços com a lâmina afiada do rentismo vil.
Ora, está fácil de resolver. Alinhemos o Brasil com as principais economias do mundo tributemos os dividendos e eliminemos a figura excrescente da distribuição de juros sobre capital próprio. Mas, um gestor do sistema financeiro irá logo lembrar: “isso não pode porque o Brasil tem uma das maiores alíquotas sobre lucros de empresas e poderá afugentar capitais. É essa a ladainha de todos os dias anunciada por alguns “analistas”. São clamores que ganham repercussão midiática e possuem prestígio, mas são falsos os seus argumentos.
A propósito, a Folha publicou, há poucos dias, estudo do Observatório de Política Fiscal do FGV-Ibre e pelo MADE/USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo) mostrando que a tributação efetiva do lucro das grandes empresas brasileiras de capital aberto é de 18,1%, quase metade da alíquota de 34% prevista na lei. Isso significa que, no papel, o Brasil possui uma das mais elevadas cargas tributárias corporativas do mundo, mas, de fato, o imposto pago está abaixo da média global de 23,5%.
Portanto, não espanta capitais tributar as grandes heranças como nos EUA em 40%, ou na Espanha do Santander, em 34%. E as propostas daqui estão léguas de distância do que existe nos países que são tomados como modelos de boa gestão pública e de alto nível de desenvolvimento.
Afinal, não queremos nos alinhar com os países da OCDE?
Ah, mas alguém lá do fundo logo gritará: “é preciso cuidado, há mais de trinta anos tivemos uma crise financeira que levou a incertezas dos agentes”. Discurso estéril, mantido para preservar o status quo.
Na verdade, o que vem se arrastando por anos e anos a fio é uma disfuncionalidade trágica que afeta a trajetória de nossa dívida pública. Trata-se da política monetária empregada pelo COPOM – Comitê de Política Monetária do Banco Central. Essa é verdadeiramente a causa de nosso problema fiscal, que não está no resultado primário e sim no custo de carregamento da dívida indexada aos juros obscenos de mais de 12% para uma inflação projetada em 5% para os próximos doze meses. Essa taxa básica, conjugada com os spreads bancários sem paralelo internacional, está quebrando boas empresas e boas famílias, pois os bancos, inclusive os públicos, agem como inimigos da economia produtiva.
Em 2022, apenas na América do Sul, o Santander, no Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Peru e Uruguai, lucrou 3,65 bilhões de euros (R$ 20,2 bilhões).
As Anas, a dona e a alta funcionária, podem divergir na questão fiscal, mas certamente festejaram esse desempenho. Os bancos, no Brasil, são verdadeiros sugadores da riqueza nacional; nesse caso, parte importante dos resultados foi para Espanha. No passado, esse e outros países europeus levaram ouro, prata e sangue indígena em seus navios. Hoje, levam dividendos e dão palpites sobre o orçamento fiscal do subcontinente.
Enfim, o Brasil tem um desafio pela frente. Já passa da hora de debatermos “a vera” o que queremos para nosso futuro. Precisamos saber se queremos desenvolver nosso país e enfrentar o subdesenvolvimento e as desigualdades ou apenas agradar os analistas financeiros portadores de visões rudimentares de economia e que trabalham a favor do rentismo mais descarado.